O jubileu de Clara de Assis, no ano de 2010, trouxe o tema da
contemplação. Não é fácil para nós, pessoas de intensa vida de
atividades, falarmos da experiência contemplativa. A contemplação passa
longe de nosso jeito; e por isso também não é fácil falarmos da
contemplação em Clara de Assis. Quando vamos ao conceito de contemplação
não é difícil, basta olharmos a experiência monástica. Mas Clara escapa
da prisão dos conceitos; em Clara de Assis há algo sutil e especial;
ela cria condições internas e externas para a intimidade com o Esposo.
Na interioridade está o silêncio e a natureza própria do lugar, o
mosteiro e a natureza que a envolve (ser Esposa). Na exterioridade ela
cria as melhores condições de vida fraterna ( ser Mãe e Irmã). É algo
forte de amor esponsal, fraternal, filial, intensamente espiritual e
afetivo. A contemplação em Clara é um estado de vida. Viver com os olhos
da alma, viver com os olhos da prece, viver com olhar amoroso. A
contemplação de Clara é uma presença agradecida, reconhecida, reverente,
eucarística, olhos e ouvidos na Palavra, é uma pura restituição: dar
ao Senhor o que lhe pertence.
Quando lemos a vida de Clara de Assis nos toca a imediatez da sua
vocação. Estar no oculto do palácio de sua família nobre, ir para a
orante e fraterna comunidade dos frades na Porciúncula, recolher-se, por
breve tempo, no mosteiro das Beneditinas e, finalmente, fixar-se para
sempre em São Damião. Tudo isto não foi feito sem o estar bem dentro da
experiência. Quem sabia viver como uma dama nobre recolhida no palácio
da família, aprendia a viver oculta no mosteiro. A vida de Clara foi
assim: sair do mundo, sair dos bens materiais, amar a convivência e
ajuda aos pobres e leprosos, ser serva junto com os servos da casa de
sua família, descobrir a vida a partir do Evangelho, solidão fraterna
como o dom de estar junto, oração contínua, trabalho para auto
sustentação, uma forma de vida religiosa como substituição radical da
vida nobre e burguesa do passado, a liberdade de renunciar tudo, ser uma
oferenda total cotidiana, um ágape de amor, um amor que não pode ser
senão sacrifício feito com serena alegria. Assim como Francisco, Clara
faz parte dos loucos de Amor, loucos por Deus. O primeiro passo desta
loucura é o seu louco amor pelo Esposo pobre e crucificado. Tudo isto
fez da vida de Clara uma contemplação natural. O Amado buscado no
silêncio do claustro não é somente uma estrutura de vida de uma jovem e
bela monja, mas é fato de Amor, é história de Amor. A contemplação em
Clara é puro enamoramento, é o estar intimamente e permanentemente na
recordação de Deus como o sentimento de uma presença. A vida de Clara
foi o sair para entrar. Sair não como fuga, mas entrar no coração do
Amado. É como diz um verso de Mário Quintana: “ Amar é a alma mudar de
casa”.
A contemplação em Clara é o seu diálogo pessoal, íntimo e profundo da
jovem bela de Assis com o Deus glorioso e crucificado; o mistério de
comunhão entre a mulher que se consagra e faz desta consagração um
encontro pessoal. Contemplar é ver o Amor face a face. O Amado está além
de tudo o que existe, mas está em tudo o que existe, é preciso
descobri-lo ali. Vê-lo em tudo porque ele está em tudo. É conhecê-lo a
partir do filtro do Amor. Quem ama conhece, fala, ora, sente o coração
purificado e agraciado. Quem ama é sensível, é profundamente humano. A
contemplação em Clara é uma leve prática ascética de cuidar, orar, fazer
e conviver. Se tem que fazer, faz por inteira, faz com o coração.
Direciona a sua paixão para sublimar a sua capacidade de amar. A
contemplação em Clara é ser Pobre, isto é, esvaziar-se de si mesma e
oferecer o seu eu. Sair do mundo e entrar na casa do Amado.
A contemplação em Clara faz parte do fenômeno místico que surgiu com
força da experiência emergente das mulheres nos séculos XII e XIII. Um
modo próprio de viver a fé sem a mediação do clero e de uma teologia
rigorosamente intelectual que bebia na fonte da escolástica. Para o
tempo experimentar Deus era uma experiência possível através do
conhecimento teológico; para as mulheres da época que entraram nos
mosteiros, experimentar Deus era abraçá-lo através de uma vida e
linguagem de amor. Matilde de Magdeburgo, uma mística medieval, chamava
esta experiência de “Senhoras do Amor”, a emanação feminina que
enlaça um diálogo de amor com Deus. É a mística nupcial, ou o
esponsalício místico. Deus é encontrado na sua humanidade e na sua
divindade: Menino, Esposo, Homem da dor e do sofrimento, misericordioso,
bondoso, materno e paterno, Rei e Príncipe. É um amor que leva à
união mística. Entrar no mosteiro é entrar na casa do Amado, na alma do
Amado, como um lugar privilegiado da transcendência. Assim fizeram
Juliana de Norwich, Gertrudes de Helfta, Margarida Porete, Humiliana de
Cerchi, Benvenuta Bojani, Matilde de Magdeburgo, Margarida de Cortona,
Hildegarde de Bingen, assim o fez Clara de Assis. Estas mulheres
viveram a contemplação como uma nova teologia da ternura e refizeram o
Cântico dos Cânticos.
Deus não é distante e rigorosamente austero como apresentava a
cultura monástica de então, mas sim uma Mãe amorosa, um Pai bondoso, um
Esposo que faz o coração vibrar de Amor, refúgio, consolação,
benevolência e encantamento. De um modo simples e sensível, Clara faz de
São Damião o seu lugar contemplativo: espaço, tempo e eternidade. Um
lugar de parar e ao mesmo tempo de fazer um caminho espiritual, esta é a
dinâmica da vida contemplativa. São Damião é o templo da intimidade,
sacrário do Espírito do Senhor, santuário, lugar para habitar
espiritualmente. Contemplar é ter o domínio das horas na constante
recordação de que tudo é sagrado, porque o amor que está n coração
diviniza o tempo. É uma privacidade que não é passividade. É um desejo
que não é reprimido , mas intensamente acolhido. Uma vida que não é
estagnação, mas processo amoroso que unifica o ser.
Tomás de Celano escreve em sua Vita I, 20: “ De tal modo as Damas
Pobres adquiriram o dom da contemplação que nela aprendem o que se deve
fazer e o que se deve evitar; conseguem, com extrema facilidade,
manter-se na presença de Deus e permanecem constantes, dia e noite, no
louvor divino e nas orações” Contemplar é aprender o que se deve fazer e
evitar sob o filtro da prece. É discernir sempre a partir do melhor.
Clara de Assis escreve à Inês de Praga: “ Caríssima, alegra-te
sempre no Senhor e não permitas que te envolva nenhuma névoa de
amargura, ó senhora amadíssima em Cristo, alegria dos anjos e coroa das
irmãs. Aplica tua mente ao espelho da eternidade, põe tua alma no
esplendor da glória, coloca teu coração na figura da divina substância e
transforma-te, inteiramente, pela contemplação, na imagem da divindade,
para que também tu possas experimentar o que experimentam os amigos
quando saboreiam a doçura escondida que o mesmo Deus reservou desde o
princípio para aqueles que o amam” ( II Carta a Inês de Praga )
Contemplação em Clara é alegria, realização, mente focada no Amor,
coração tomado pela substância divina, transformação, doçura saboreada,
e tudo isto e muito mais sem deixar, um instante sequer, decair. É
enlevo, êxtase, prática e presença. Que Santa Clara de Assis nos ensine a
contemplar!
Frei Vitório Mazzuco
Fonte: franciscanos.org.br
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