Na presente reflexão tem-se por objetivo fazer algumas considerações
acerca do primeiro capítulo da Forma de Vida de Santa Clara, aprovada
oficialmente pelo Papa Inocêncio IV, aos 09 de agosto de 1253, dois dias
antes de sua morte. A leitura do primeiro capítulo nos sugere destacar três aspectos
fundamentais da Forma de Vida clariana: a origem, o conteúdo central e a
obediência e reverência ao senhor Papa (Igreja romana) e ao
bem-aventurado pai Francisco (Ordem).
O título do primeiro capítulo da Forma de Vida indica que o processo
de conversão de Clara ao Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo tem
início em Deus mesmo: “Em nome do Senhor começa a forma de vida das
Irmãs Pobres”. Isto quer dizer que o Senhor fixou terna e afetuosamente
sobre ela o Seu olhar e suscitou nela uma resposta, consciente e livre,
de amor total a Ele (cf. 2In 19-20). Jesus Cristo acendeu nela o
ardentíssimo desejo de deixar todas as vaidades desta terra e unir-se ao
Cordeiro imaculado como sua digníssima esposa. Clara reconhece que a sua vocação é, antes de tudo, uma especial
graça de Deus, pois “quanto maior e mais perfeita, mais a Ele é devida”
(TestC 2s).
Por conseguinte, tinha consciência de que não estava nesta
Vida por iniciativa particular, sua, nem pressionada por Francisco, mas
porque o altíssimo Pai celestial, por sua misericórdia e graça, se
dignou iluminar o seu coração para fazer penitência, segundo o exemplo e
ensino do bem-aventurado pai Francisco (cf. TestC 24s; cf. RSC 6,1).
No princípio da Forma de Vida clariana estão, portanto, o “nome do
Senhor” e o “altíssimo Pai celestial”. O Pai celestial manifestou-se,
por excelência, na pessoa de Jesus Cristo, a quem deu o nome de “Senhor”
porque “aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo por
solidarismo com os homens. (…) e humilhou-se, feito obediente até a
morte, até a morte da cruz” (Fl 2, 7-8). Paradoxalmente, o Senhor é
aquele que incondicionalmente ama, serve e se humilha ao extremo. De
modo que, ao iniciar a sua Forma de Vida invocando o “nome do Senhor”,
Clara anuncia que o sentido fundamental de sua existência consiste em
deixar-se impregnar e conduzir pelo “espírito do Senhor e seu santo modo
de operar” (RB 10,9). O que importa para Clara é que o espírito de Deus
e sua santa maneira de operar perpasse e inspire toda a sua vida, sem
que nada seja excluído disso. De modo que o Senhor-Servo é a fonte
inspiradora e modeladora e o fim do seu modo de vida.
Poder-se-ia dizer que a Forma de Vida clariana é, talvez, muito mais
ponto de chegada do que ponto de partida. Ou melhor, no modo de vida de
Clara coincidem o ponto de partida e o ponto de chegada. Pois, o
princípio movente e a finalidade de sua existência é viver em comunhão
com o Senhor que por amor a nós se fez pobre, a fim de nos enriquecer
com sua pobreza (cf. 2Cor 8,9). A meta é que todos cheguem ao estado de
homens perfeitos, que, na maturidade do seu desenvolvimento, é a
plenitude de Cristo (cf. Ef 4,13).
Portanto, Clara não teve dúvidas quanto ao conteúdo central da Forma
de Vida que voluntariamente professou: “observar o santo Evangelho de
Nosso Senhor Jesus Cristo”. O Evangelho não é letra morta, mas é a
Pessoa de Jesus. É a Ele que Clara, totalmente vazia e livre, sem nada
de próprio, desejou abraçar. Por isso, ao escrever a Santa Inês de
Praga, exorta-a a colocar no Espelho (Jesus Cristo Pobre e Crucificado)
toda a sua capacidade de compreender (a mente), toda a sua capacidade de
amar (o coração) e toda a sua capacidade de viver em Deus (a alma):
“Ponha a mente no espelho da eternidade, (…) e transforme-se, inteira,
pela contemplação, na imagem da divindade” (3In 12-13).
E o terceiro elemento que se pretende destacar, à luz do primeiro
capítulo da Forma de Vida, é a obediência e referência ao Papa (Igreja) e
a São Francisco (Ordem). Quanto à obediência ao Papa constata-se que
Clara não quis viver o ideal evangélico fora da Igreja, pois estava
perfeitamente consciente de que a sua Forma de Vida estava sendo gerada
pelo Senhor no seio da Igreja (cf. TestC 46). E, ao obedecer ao Papa, na
verdade ela não obedeceu a um indivíduo ou a uma organização
hierárquica, mas à autoridade de Jesus Cristo que ela vislumbra na
pessoa do Papa e que instituiu a Igreja: “tu és Pedro e sobre esta pedra
construirei a minha Igreja” (Mt 16,18). Além disso, sabe-se que Clara e
Francisco não teriam ouvido a mensagem do Evangelho caso este não
tivesse sido anunciado por um ministro da Igreja. E em relação a
Francisco, Clara voluntariamente prometeu obediência não ao ego de
Francisco, mas ao Espírito que iluminou e plasmou a existência de ambos
(cf. TestC 24s; RSC 6,1). Portanto, Clara obedeceu livremente à intuição
originária da Igreja e da Ordem Franciscana.
Por fim, importa frisar que a vida religiosa, sob a inspiração de
Clara e Francisco, já é sempre uma resposta a um chamado de Deus. É Deus
que convoca à vida religiosa franciscana, e dos que se sentem
convocados requer-se o contínuo e intenso esforço espiritual de
responder adequadamente ao chamado. Pois, as muitas solicitações do
complexo mundo em que se vive, tanto na ordem do ter, do poder, do
saber, como na ordem do prazer, são provocações que podem afetar e
ofuscar tanto a vocação quanto a decisão pessoal de viver o Evangelho de
Jesus Cristo. Nenhuma pessoa, nenhum grupo pode se dizer imunizado do
vírus do neoliberalismo.
Ademais, na atualidade, ou na era caracterizada como pós-modernidade,
apregoa-se que não existe nenhuma decisão definitiva. De fato, a
decisão íntima e pessoal de doar-se livre e responsavelmente aos irmãos e
irmãs, a exemplo de Jesus Cristo e sob a inspiração de Francisco de
Assis, deve ser continuamente retomada. A promessa de viver em comunhão
com Aquele que “assumiu a condição de servo” (Fl 2,7) deve ser
reassumida todos os dias para que se torne definitiva. Por isso, a
exortação de Clara a Inês de Praga jamais deixará de ser atual e
profética: “Olhe dentro desse espelho todos os dias, (…) e espelhe nele sem cessar o seu rosto” (4In 15-16)
Frei João Mannes, OFM
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