Da vida e do modo de
ser de São Francisco nasceu uma inspiração de vida, um caminho. A
espiritualidade franciscana é fundamentalmente seguimento de Cristo, pobre,
humilde e crucificado. E o seguimento torna-se um encantamento, que por sua vez
leva à configuração com o Cristo. A experiência do
seguimento que São Francisco faz não segue uma ordem cronológica da vida de
Cristo (nascimento, vida adulta, paixão e morte), mas é uma descoberta
gradativa do único e mesmo mistério de Cristo, revelação do amor e da
misericórdia de Deus para com a humanidade.
Assim, ao longo
de sua vida, Francisco descobre e experimenta a pessoa e o mistério de Cristo
nas suas três dimensões, inspirando nele três atitudes:
a pobreza da
encarnação: o seguimento;
a humildade da
eucaristia: o encantamento;
e a doação total da
paixão e cruz: a configuração.
De outro modo,
poderíamos dizer que a experiência cristológica de Francisco tem um começo (a
encarnação), um meio (a eucaristia) e um fim (a cruz), não porém, numa ordem
cronológica mas numa ordem espiritual. Na experiência
pessoal de Francisco, a cruz está no início (São Damião e o leproso) e no fim
(as chagas e o Monte Alverne); no 'meio' está a encarnação (Greccio) e a
eucaristia.
A ENCARNAÇÃO -
São Francisco descobre a pobreza do Filho de Deus e de sua Mãe, como condição
para se fazer um de nós:
"Quero evocar a
lembrança do Menino que nasceu em Belém e todos os incômodos que sofreu desde a
sua infância; quero vê-lo tal qual ele era, deitado numa manjedoura e dormindo
sobre o feno, entre um boi e um burro" (1Cel, 84).
"Se o Filho de
Deus desceu da grande altura que separa o seio do Pai de nossa abjeção, foi
para nos ensinar a humildade, Ele, o Senhor e Mestre, pela palavra e pelo
exemplo" (LM 6,1).
Quando São Francisco
de Assis, em sua intuição original recriou no presépio de Greccio, a expressão
poética do natal, desejava experimentar e reviver na própria carne, o mistério
e o encantamento, o amor e a dor, a contradição da glória divina revelada na
pobreza do Filho de Deus. Desde então, compor um presépio com figuras e
materiais comuns e ordinários, tornou-se um ato de fé, vislumbrando a presença
do Deus encarnado em tudo aquilo que constitui a vida. Para contemplar o
presépio e nele descobrir a revelação divina no cotidiano humano, há uma
condição: é preciso mudar o coração e o olhar, porque o mundo tornou-se
presépio.
A EUCARISTIA -
São Francisco experimenta o encantamento pela presença real de Cristo na
eucaristia, como encarnação (presépio) repetida e permanente no meio de nós:
"Pasme o homem
todo, estremeça a terra inteira, rejubile o céu em altas vozes quando sobre o
altar, estiver nas mãos do sacerdote o Cristo, Filho de Deus vivo! Ó grandeza
maravilhosa, ó admirável condescendência! Ó humildade sublime, ó humilde
sublimidade! O Senhor do universo, Deus e Filho de Deus, se humilha a ponto de
se esconder, para nosso bem, na modesta aparência do pão. Vede, irmãos, que
humildade a de Deus! Derramai ante Ele os vosso corações! Humilhai-vos para que
Ele vos exalte! Portanto, nada de vós retenhais para vós mesmos, para que
totalmente vos receba quem totalmente se vos dá!" (C.tOrdem, 26-29).
Atitude eucarística
= resposta de vida.
A CRUZ - As
chagas de São Francisco não é ponto de 'chegada', o fim de sua vida, antes é
sinal da configuração vivida ao longo de toda a sua vida. É o mesmo mistério de
amor da encarnação e da eucaristia:
" Ó Senhor, meu
Jesus Cristo, duas graças eu te peço que me faças antes de eu morrer: a
primeira é que, em vida, eu sinta na alma e no corpo, tanto quanto possível,
aquelas dores que tu, doce Jesus, suportaste na hora da tua dolorosa Paixão. A
segundo, é que eu sinta, no meu coração, tanto quanto possível, aquele
excessivo amor, do qual tu, Filho de Deus, estavas inflamado, para
voluntariamente suportar uma tal paixão por nós pecadores" (3ª
Cons.Estigmas).
"Francisco já
tinha morrido para o mundo, mas Cristo estava vivo nele. As delícias do mundo
eram uma cruz para ele, porque levava a cruz enraizada em seu coração. Por isso
fulgiam exteriormente em sua carne os estigmas, cuja raiz tinha penetrado
profundamente em seu coração" (2Cel 211).
>> O primeiro
significado das chagas: significam que Deus é Senhor de sua vida. Deus
encontrou nele a plena abertura e a máxima liberdade para sua presença.
>> O segundo
significado das chagas é o de que Deus não é alienação para o ser humano, ao
contrário, é sua plena realização e salvação.
>> O terceiro
significado: as chagas expressam que a vivência concreta do amor deixa marcas.
A exemplo de Cristo, Francisco quis suportar/carregar e amar os irmãos para
além do bem e do mal (amor incondicional). As chagas não vêm de fora, nascem
dentro da vida (corpo e alma).
>> O quarto
significado: seguir o Cristo implica em morrer um pouco a cada dia: "Quem
quiser ser meu discípulo, tome a sua cruz a cada dia e me siga" (Lc 9,23).
A EXPERIÊNCIA DO
'PEREGRINO PASCAL'
Foi depois de um
longo caminho de purificação interior, de renúncia, de integração, que
Francisco tornou-se um homem reconciliado. É romantismo e ilusão imitar São
Francisco sem, no entanto, abraçar a renúncia, a pobreza, a cruz. É pura
fantasia começar onde ele terminou. A vida toda de Francisco foi um
reconciliar-se contínuo com todas as dimensões da existência: a interior
(consigo mesmo), a superior (com Deus), e a exterior (com a natureza).
a) A reconciliação
consigo mesmo
Num determinado
momento de sua juventude, Francisco converteu-se. Houve uma "virada"
no seu modo de ser, de comportar-se, de relacionar-se. Aconteceu uma ruptura e
iniciou um pesado processo de purificação interior: vigílias, jejuns,
penitências, privações, e o encontro com o leproso. Ele abraça e ama
alegremente o próprio negativo, vencendo o diabólico em si mesmo. Enfrenta o
mal na sua fonte, o próprio coração, integrando-o em vez de negá-lo.
b) A reconciliação
com Deus
Francisco fez uma
profunda experiência de Deus (cf. a oração Louvores a Deus). Descobriu que a
misericórdia de Deus é infinitamente maior que todos os nossos pecados, porque
seu amor é maior que o nosso coração (Lc 6,35). Deus não se deixa vencer por
nossos pecados. Por isso, quando o pecado é assumido na humildade e
simplicidade, torna-se caminho de encontro com Deus.
c) A reconciliação
com a natureza
Deste mergulho no
mistério de Deus, Francisco descobriu a fonte de tudo e sentiu ligado à todas
as coisas e pessoas, porque elas não estão jogadas aí, alcance da mão do homem.
Ele não se coloca sobre as coisas, mas junto delas, como irmão na mesma casa.
Colocando-se no
mesmo nível das criaturas, Francisco não se define pela diferença com elas, mas
pelo que tem em comum. Desse modo de ser é que nasce a sua pobreza. Ele deixa
as coisas serem, renuncia a dominá-las e submetê-las, ou usá-las como objetos
de posse e poder. Pobre, se sentia livre e fraterno para comungar com todas as
coisas, porque não tinha mais o que perder.
d) A reconciliação
com os outros - a perfeita alegria
Francisco não espera
pela mudança dos outros. Começa por si mesmo, inspirando-se no amor de Deus que
suporta e ama para além do bem e do mal (Mt 5,45 e Lc 6,35). Acolher as sombras
dos outros é para ele, manter os laços da fraternidade apesar do negativo. Não
apenas suporta, mas ama e acolhe alegremente o negativo. Só deste modo o homem
torna-se verdadeiramente livre, pois nada mais poderá ameaçá-lo (o testemunho
de Freud).
São Boaventura
afirmou que "Francisco parecia ter voltado ao primitivo estado de
inocência original, nasceu em seu coração o paraíso terrestre". Por esse
modo-de-ser, franciscano, o homem pode viver e celebrar o mundo como um paraíso,
quando ele mesmo se transfigurou e se reconciliou com todas as dimensões de sua
história e de sua existência.
Frei Régis Daher
Fonte: franciscanos.org.br
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