Francisco em meditação, de Zurbaran
O silêncio como opção de vida alternativa
1. A Cúria Geral da Ordem dos Frades Menores, em 2003, publicou um pequeníssimo fascículo intitulado: O caminho que leva ao “lugar do coração”. Achegas para descobrir interioridade e silêncio na vida franciscana.
Trata-se de uma joia encerrada num caderno de 16 pequenas páginas. “O
caminho para a interioridade, hoje, dá-se num tempo de mudanças, tempo
rico de muitos sinais de redescoberta da interioridade e do silêncio. A
sociedade secularizada vem focada sobre o indivíduo, com uma identidade
fluída. Temos diante de nós uma mudança radical da visão do homem,
determinada sobretudo pela tecnologia. São imensos os recursos da
inteligência humana, descobertos hoje, que podem ajudar os homens a
criar um mundo melhor. É importante, no entanto, que o homem permaneça
sujeito desse desenvolvimento, sobretudo a partir da verdade profunda de
si mesmo” (p.4-5). Num mundo de superficialidade, de pressa, de
técnica fria, de comunicação on line, de áudio-fones, de corrida,
a viagem ao fundo do coração torna-se delicada. Sem ela, o ser humano
se torna joguete de forças cegas e, se religioso, pessoa de
superficialidade. “Tornamo-nos estranhos a nós mesmos. O percurso para
dentro de nossa interioridade não é só terapêutico para a nossa cultura
do barulho, mas também vem a ser um caminho voltado para o acolhimento,
para uma nova civilização do amor. O caminho para dentro de nossa
interioridade e para o silêncio torna-se, então, o testemunho de uma
opção de vida alternativa” (p. 5). Muito bem dito: não podemos seguir
a onda. O caminho do coração é uma alternativa em nossos tempos.
Precisamos tomá-lo.
2. Não falamos de um silêncio apenas material, do não falar
ascético, frio, nem do orgulhoso mutismo, mas de uma aquietação que
começa com o silenciamento de nosso ego e o desejo de deixar a verdade e
o amor penetrarem em nossas entranhas. “Como o ar, meio em que aparece a
luz e vibram uma infinidade de ondas, como o fogo, que aquece e
ilumina, como a água que purifica e desaltera, como a terra, enfim, que
nos carrega e nos alimenta, o silêncio é um elemento vital,
indispensável para nossa subsistência espiritual, para nosso equilíbrio
interior, para a paz e inteligência do coração e da alma. Mas é também
um elemento raro, sutil, frágil, que se deve querer encontrar, saber
procurar e, em seguida, fertilizar com toda doçura, para que permaneça
vivo e fecundo. O ar viciado é irrespirável, o fogo sem controle morre
ou, ao contrário, devora tudo, a água poluída se transforma em veneno e
a terra não tratada fica estéril; da mesma forma o silêncio – e a
solidão à qual está vinculado – precisa ser desejado, respeitado e
cultivado com atenção e paciência para tornar-se espaço puro de
concentração de meditação e de sonhos com os olhos abertos” (Sylvie Germain).
3. Há muitas modalidades de silêncio: o silêncio delicado que
respeita o doente que quer dormir e a criança que mal e mal pegou no
sono; o silêncio de quem guarda um segredo ou não quer denegrir a imagem
do outro com palavras verdadeiras, mas que não precisam ser ditas; o
silêncio do cirurgião quando realiza uma delicada e perigosa operação.
Há o silêncio estático do homem que busca a Deus, se embrenha no
deserto, tenta auscultar o mistério de seu próprio interior, onde o
murmúrio do silêncio ecoa como se fosse uma brisa suave. Há esse
exercício do silêncio exterior para se chegar à aquietação interior, a
um vazio que permita ao Espírito agir em nós e de não sermos meros seres
apressados, correndo de um lado para o outro sem ouvir a voz do Amado.
Não podemos, como diz Francisco, perder o “espírito do Senhor”.
4. Francisco de Assis, na verdade, vivia o enlace amoroso com o
Senhor no claustro do mundo, mas sentia-se atraído pelo silêncio das
cavernas e das grutas. Assim escreve Michel Hubaut: “Em suas biografias
podemos encontrar dezoito lugares de vida eremítica que encontrou ao
longo de suas andanças. Francisco que era capaz de visitar num só dia,
a pé ou montado num burrico, quatro ou cinco vilarejos, passou semanas
inteiras na solidão e na oração. Sentia sede de Deus, como também sede
pela salvação de seus irmãos. Sede de silêncio e sede de colóquios.
Estes regulares mergulhos no silêncio ensinaram-no a conservar no meio
do mundo aquele santuário interior no qual ele adorava a presença do
Senhor. Convida-nos a fazer de nosso corpo a “sala do alto” onde
haveremos de receber a visita do Espírito. Silêncio e interioridade: as
duas coisas são para Francisco mais um despertar do coração do que um
retiro espacial: ‘Onde quer que estejamos e para onde quer que andemos
levemos sempre conosco nossa cela. Nossa cela é o nosso irmão corpo e
nossa alma é o ermitão que mora nessa cela para rezar e meditar’”(Legenda Perusina, 80). (Hubaut. El caminho franciscano, p. 58).
5. O silêncio nos ajuda a guardar a lembrança de Deus. Não é
mutismo porque ele favorece, ao mesmo tempo, a relação com Deus e entre
os irmãos. Os buscadores de Deus, profissionais como os religiosos e os
monges, querem manter viva a lembrança de Deus. Um autor descreve o
silêncio dos cistercienses: “Chamado a viver uma autêntica
‘espiritualidade de comunhão’, segundo o desejo de João Paulo II, o
monge procura o silêncio porque é pelo e no silêncio que ele pode viver a
lembrança de Deus. O monge se recorda! Ele é o homem da memória, da memoria Dei.
É convidado a viver ‘na constante lembrança de Deus’. Na Bíblia, o
grande pecado é o esquecer Deus. Daí o terrível grito do profeta: ‘Eles
me esqueceram!’. E, no livro do Deuteronômio, há essa forte acusação:
‘Esqueceste o Deus que te colocou no mundo’ (Dt 32, 19). Uma
das principais missões do monge não seria exatamente de manter viva a
lembrança de Deus? Não que os mosteiros sejam os únicos lugares onde se
vive verdadeiramente a lembrança de Deus. Verdade, no entanto, que o
mosteiro é concebido para colocar o monge nas melhores disposições para
que ele possa lembrar-se de Deus, assim como a esposa se recorda do
esposo” (Paul Houix, o.c.s.o. in La Vie Spirituelle, julho de 2012, p. 312).
6. Em nossa vida franciscana, de maneira bem prática,
saberemos cultivar o silêncio. Há esse silêncio da casa, do quarto, da
cela, da capela, silencio exterior que nos leva à quietude interior. Há
a recitação do Ofício das Horas com calma, interrompida pelo silêncio
entre um salmo e outro, entre um leitura e um responsório, precedida
por momentos de silêncio. Há a celebração da Eucaristia que transforma
nossa vida. Degustamos momentos de silêncio na sacristia antes de nos
dirigirmos ao altar. Há essa discrição nas conversas no refeitório. Há
essa prudência de não falar para fora o que precisa ficar dentro. Há
todos esses momentos de silêncio previstos nas celebrações. Nós,
franciscanos não somos monges, mas não podemos deixar a porta do
interior escancarada… Precisamos sentir a brisa suave do silêncio…
7. “Talvez em nossos tempos dever-se-ia falar de um esmolar do
silêncio, de uma busca do silêncio. Quem sabe falar mesmo de uma
conquista do silêncio. Talvez conquista seja uma palavra pouco
apropriada, porque estaria associada a furor, barulho. Os conquistadores
podem ser barulhentos e quase furiosos. Melhor falar em busca do
silêncio, perseguir o silêncio, abastecer-se do silêncio. O excesso de
barulho nos projeta fora de nós mesmos, aliena. Na simbologia cristã, o
barulho, fazendo com que estejamos fora de nós mesmos, nos impede o
acesso para as fontes mais profundas. O silêncio, então, é plenitude. O
silêncio místico cristão nunca é abismo, nem vazio, nem negação de
desejo. No silêncio há uma Palavra. À sombra do silêncio, no silêncio
interior, para além dos desvios do espírito surge uma outra palavra.
Insinua-se uma presença que fala e pede ao coração que continue a
estrada. O silêncio é como uma porta que se abre para outros mundos, ou
simplesmente para o Outro que habita em nós. Para isso será preciso
dar tempo ao silêncio, ir além dessa necessidade narcisista dele.
Necessário sempre de novo que nos tornemos humanos”(André Beauchamp, Les bruits du monde, in Christus, 194, p. 142). O silencio nos humaniza!
8. Vamos terminar retomando o texto da Ordem dos Frades
Menores que nos fala do caminho que leve ao lugar do coração: “São
Francisco convida-nos a ‘conservar no coração os segredos do Senhor’ (Adm 28,3), através da paz e da meditação, sem nervosismos, nem dissipação (Adm 27,2).
Insiste sobre a cela interior a carregar sempre conosco. O silêncio a
ser observado é aquele do Evangelho, que evita palavras ociosas e
inúteis no fruto da oração. Assim nos tornaremos sempre mais
’unificados’ no coração e a partir do coração. A Virgem Maria é
modelo para aqueles que acolhem a Palavra, a guardam no coração e a
vivem todos os dias” (p. 10).
Frei Almir Ribeiro Guimarães
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